07/05/2021

MV 2021 - Com Santa Luísa de Marillac, nas idas e vindas, tecendo conexões de encontro - continuação

 

COM SANTA LUISA DE MARILLAC, NAS IDAS E VINDAS, TECENDO CONEXÕES DE ENCONTRO!

 

- PARTE 2 – Conexão com a família

 

Na primeira conexão de encontro, inspirada na vida e obra de Santa Luísa de Marillac, lançamos um olhar sobre sua infância, adolescência e juventude. Percebemos que, desde o primeiro momento, seu encontro com a história transcorreu entre idas e vindas. Entre presenças e ausências se teceu sua existência, e foram elas que moldaram sua personalidade singular.

 

Nessa segunda conexão queremos revisitar sua experiência familiar, vivida de modo particular junto a seu esposo Antônio Le Gras e seu filho Miguel. Embora saibamos que o casamento e a maternidade não eram a escolha inicial de Luísa para seu projeto de vida, e as circunstâncias foram levando-a a assumir essa proposta, é oportuno olharmos para essa etapa da vida de nossa Fundadora não como sinônimo de sofrimento e frustração permanente. Apesar das arbitrariedades dos Marillac, das marcas e ausências da infância, ela construiu com seu esposo e filho um lar, um espaço de afeto e de partilha.

 

Seguindo o costume da época em que os casamentos eram arranjados entre as famílias, em 05 fevereiro de 1613, com 21 anos idade, Luísa se casou Antônio Le Gras, de 32 anos, secretário de ordenanças da rainha Maria de Médicis, na igreja de São Gervásio. Antônio era um burguês em ascensão, um bom homem provindo de uma família antiga e de boa índole que era conhecida por seu espírito caridoso. Entre as poucas coisas que se sabe sobre o esposo de Luísa, era que tinha uma saúde instável e um temperamento um tanto irritável (CALVET, 1958, p. 34). O casal passou a residir no palácio de Attichy, pertencente a Octávio Doni d’ Attichy e Valence de Marillac, tia de Luísa, onde permaneceram até 1622.

 

 Do ponto de vista político e social, se tratou de um casamento de benefícios mútuos. Da parte de Antônio, a união lhe inseriu em relações diferenciadas da vida da sociedade e também da corte. Para os Marillac, representou vantagens políticas, dado que permitiu ampliar a influência da família no governo real. No contrato de casamento assinado no dia anterior, Luísa foi qualificada como filha natural de Luís de Marillac e seus parentes como “amigos da noiva”. É válido recordar que, caso fosse reconhecida como filha legítima, Luísa teria o título de nobre, o que a impediria de casar-se com alguém que não fosse da mesma classe social.

 

De outra parte, a condição social inferior de Antônio era oportuna para os Marillac-Attichy, familiares de Luísa que, após prever um bom dote para ela, em alguns meses lhe arranjaram a união. Martínez indica que esse arranjo familiar explica por que Luísa não procurou entrar em outra congregação depois que não foi aceita nas Capuchinhas. Para os Marillac, foi uma forma de resolver o desconforto que a existência de Luísa representava na árvore genealógica da família. Como Antônio fazia parte da burguesia francesa, após casada Luísa passou a ser chamada de Mademoiselle Le Gras, e não “madame”, como era o pronome de tratamento da aristocracia (MARTÍNEZ, 1995, p. 27-28).

 

Percebemos, assim, que o casamento não foi para Luísa uma escolha. Irmã Bárbara Bailly, que foi quem cuidou dela nos últimos anos de vida, confirmou isso quando relatou que Luísa se casou contra a sua vontade e somente para obedecer seus parentes. Há de se considerar o contexto da época, de perfil eminentemente patriarcal, segundo o qual as mulheres eram consideradas incapazes de tomar decisões (RICHARTZ, 2012, p. 28).

 

Contudo, como já indicado acima, é importante que não consideremos o casamento de Luísa um fracasso. Pelo contrário, ela foi feliz nos anos de sua união com Antônio, especialmente nos primeiros anos. Como considerou Irmã Elizabeth Charpy, Filha da Caridade francesa e maior estudiosa de Luísa na atualidade: “Antônio e Luísa não se escolheram; contudo, um amor verdadeiro vai nascer entre eles. Junto a seu marido, Luísa descobrirá a alegria e o calor de um lar” (CHARPY, 1990, p. 15). É sobre esse período que se refere o depoimento de Madame de La Cour sobre as atitudes de solidariedade cristã de Luísa para com as pessoas empobrecidas, acompanhadas de uma vida de intensa penitência e práticas devocionais, que inspira o marcador deste ano. Junto com o esposo, recebeu autorização para ler a Bíblia no texto integral em francês, o que era privilégio de poucos na época. Formaram uma família zelosa de seus compromissos de fé e zelosos para vida espiritual.

 

Em 18 de outubro de 1613, a chegada do pequeno Miguel inaugurou um novo momento na vida familiar de Luísa. A maternidade foi para ela uma experiência única e desafiante. Fisicamente, Miguel era uma criança franzina e com desenvolvimento lento. Por essa situação, vemos da parte de Luísa uma preocupação excessiva e superproteção para com o filho. É possível que Luísa tenha projetado no filho as expectativas que não pode realizar por si mesma. O seu desejo de ser uma exímia mãe não levou em conta os necessários processos de autonomia que seu filho precisava. Posteriormente, Miguel buscou a seu modo se soltar das garras do afeto e preocupação da mãe. Nessa relação de “idas e vindas”, Vicente de Paulo teve uma contribuição importante na mediação da relação entre mãe e filho.

 

Por volta de 1622, Antônio foi acometido de uma enfermidade grave que afetou seu comportamento e o levou à morte em 1625. Um dos primeiros efeitos da doença foi torná-lo irritável e de difícil convivência (CALVET, 1958, p. 42). O casal deixou a residência palaciana e passou a residir em uma casa alugada. No tempo que residiam no palácio, Antônio se encarregou do cuidado dos sobrinhos menores depois da morte de Octávio (1614) e Valence (1617). A dedicação a esta tarefa consumiu sua atenção de modo que se descurou de seus próprios negócios, o que comprometeu as finanças da família. De outra parte, a relação com os sobrinhos se desgastou, especialmente com relação a Luísa. Por esses motivos, a mudança se fez necessária.

 

Todas essas situações envolvendo o adoecimento do marido, os desafios na criação do filho, os desconfortos em relação à sua família paterna, mergulharam Luísa numa experiência interior de intenso sofrimento e conflito. Voltava à sua mente a promessa de consagração feita em sua juventude, vendo na situação que estava vivendo um castigo de Deus pelo voto não cumprido. Acompanhava-lhe um sentimento de culpa, reforçado por seu perfil introspectivo e cheio de escrúpulos. Embora contava com a ajuda de seu diretor espiritual, D. Camus, viu-se acometida pelo abatimento, pela inquietação interior e pela dúvida. Essa “noite escura da alma” perdurou com intensidade até o ano de 1623, ano que fez voto de viuvez, caso seu esposo viesse a falecer.

 

Um acontecimento singular marcou o início de um processo de transformação interior que deu novo rumo à vida de Luísa. Nós o conhecemos como “Luz de Pentecostes” – ou Lumière, em francês. Desde a semana anterior, da festa da Ascensão, ela esteve enredada em uma situação interior ainda mais sombria. Calvet fala de um período de uma espécie de “ateísmo opaco e desesperado” (1958, p. 45). Pergunta-se, inclusive, se deveria deixar seu esposo enfermo para reparar seu voto não cumprido, bem como mudar de diretor espiritual, haja visto que se sentia muito apegada a ele, que, em breve, deixaria Paris. No plano espiritual, foi tomada por dúvidas em relação à imortalidade da alma.

 

No domingo de Pentecostes, participando da missa na Igreja de São Nicolau dos Campos, o espírito de Luísa foi esclarecido de suas dúvidas; a paz envolve sua interioridade. Sentiu-se confortada em relação à permanência junto a Antônio e que, um dia, assumiria o propósito de consagração tão sonhado e junto a outras pessoas que fariam o mesmo. Contudo, não entendeu no momento como isso se daria, dado que via esse ideal de serviço ao próximo seria vivido numa experiência de “idas e vindas”. Antevemos nesse acontecimento místico de nossa Fundadora a novidade inaugurada pela Companhia das Filhas da Caridade que, diferente das demais congregações da época, abraçaram uma consagração a Deus vivida no apostolado ativo entre o povo. Acerca de seu diretor, sentiu que deveria permanecer em paz quanto a isso e que Deus lhe daria um outro companheiro de caminhada espiritual a quem, a princípio seria resistente. Posteriormente, saberemos que se trata de Pe. Vicente de Paulo, cujo encontro inicial com Luísa não foi dos mais afetuosos. Por fim, sua alma foi aquietada com a certeza de que o que ocorria procedia de Deus.

 

Esse acontecimento místico fortaleceu Luísa. Permaneceu junto ao esposo até seu falecimento, em dezembro de 1625. A morte de Antônio também representou uma situação de desamparo: a criação do filho adolescente, as incertezas em relação ao futuro e como se daria o que havia antevisto em sua experiência mística. Intensifica sua vida de oração através da multiplicação de atos de piedade e devoção que beiram o exagero. Ela, como sempre, intensa em seus sentimentos e propósitos.

 

No começo de 1626, Luísa mudou de endereço, passando a residir na rua Saint-Victor, perto do Colégio Bons Enfants, onde morava Pe. Vicente de Paulo que ela conhecera em 1625 e que passou a ser seu diretor espiritual. A mudança esteve associada a motivos econômicos que sobrevieram após a morte do esposo (CHARPY, 1990, p. 23). Passados os formalismos e resistências dos primeiros tempos, Luísa e Vicente cresceram no conhecimento e abertura mútua. Para ela, os conselhos de Vicente foram de grande valia em sua relação com o filho Miguel. De outra parte, Vicente percebe os valores espirituais de Luísa e a profundidade de sua alma. Uma amizade que posteriormente foi amadurecendo e se solidificando pela cooperação na missão comum, nas “idas e vindas” que foram se delineando nos caminhos de ambos.

 

Para nos provocar a aprofundar a reflexão:

  • Que aspectos educativos percebemos envolvidos nas experiências vividas por Santa Luísa nesse período de sua vida? A que experiências eles se assemelham à nossa prática pedagógica e pastoral hoje?
  • A trajetória histórica de nossa Fundadora afirma cada vez mais uma compreensão de santidade que se tece na busca cotidiana de imprimir sentido à vida, integrando as situações que se apresentam, num aprendizado permanente. Que inspirações isso traz para nossa presença e atuação como educadores/as?
  • Referências:

     

    CALVET, Jean. Santa Luísa de Marillac. Auto-retrato. Tradução: Filhas da Caridade. Lisboa/Portugal: Editorial Evangelizare, 1958.

    CHARPY, Elisabeth. Contra ventos e marés. Luisa de Marillac. Rio de Janeiro: Associação São Vicente de Paulo: 1990.

    ______ Um Caminho de Santidade. Luísa de Marillac. Tradução: A. Ornelas. Lisboa/Portugal: Grafilarte, [199-?].

    FILHAS DA CARIDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO. Santa Luísa de Marillac. Curitiba, 2013. Disponível em: < https://filhasdacaridade.com.br/institucional/sta-luisa-de-marillac/6>. Acesso em: 16 abr. 2021.

    MARTÍNEZ, Benito. Empeñada en un Paraíso para los pobres. Salamanca/Espanha: Editorial CEME, 1995.

    RICHARTZ, Alfonsa. Luísa de Marillac. 1591-1660. Tradução: Maria do Rosário Pernas. Lisboa/Portugal: Paulinas Editora; Artipol – Artes Tipográficas, 2012.

    SANTA LUISA DE MARILLAC. Correspondência e Escritos. Tradução: Ir. Lucy Cunha, FC. São Paulo: Editorial Legis Summa, 1983.

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