SANTA LUÍSA DE MARILLAC (1591-1660)

 

Nascimento e infância

 

Luísa de Marillac nasceu em Paris, em 12 de agosto de 1591. Sua origem familiar está envolta em controvérsias, especialmente em relação à identidade de sua mãe que, ainda hoje, permanece desconhecida. Em relação à família paterna, seus biógrafos a apresentam como filha de Luis de Marillac, pertencente à nobreza francesa. Sua descendência nobre, contudo, não foi para ela sinônimo de regalias e facilidades, pois nunca foi, de fato, reconhecida pelos seus. A preocupação em zelar pela boa fama de sua condição social, fez com a família paterna a assumisse como o que J. Calvet, um de seus biógrafos, afirmou: “[...] uma jovem, que não rejeitava, mas que não devia figurar na árvore genealógica. A família defendia-se”[1].

 

Tal como o nascimento, sua infância é marcada por desencontros e privações, especialmente da presença e do afeto familiar. Ainda nos primeiros anos, Luísa é colocada no Convento das Dominicanas de Poissy, onde residia sua tia-avó. Ali recebeu uma esmerada educação sob vários aspectos – humano, intelectual, espiritual, artístico – e que lhe foi de grande valia em sua missão futura junto às Irmãs e aos pobres.

 

Aos 13 anos é retirada de Poissy pela família, passando a morar no pensionato de uma modesta senhora que acolhia várias jovens de sua idade. Alguns de seus estudiosos especulam, inclusive, que essa senhora seria a mãe biológica de Luísa. Neste lugar aprendeu os diversos ofícios relativos ao cuidado do lar, tidos pela sociedade da época como atribuições específicas das mulheres. O aprendizado que recebe é respondido pelo auxílio que presta na melhoria das finanças daquela casa, contribuição que pode dar através de seus dotes artísticos empregados na confecção e venda de artesanatos, e seu espírito de organização. Ali residiu até 1613.

 

As buscas da juventude

 

Em geral, seus biógrafos a descrevem como uma mulher de constituição física pequena e frágil, frequentemente acometida de enfermidades. Embora não fosse acometida por doenças sérias, sua saúde exigia dela permanentes cuidados. Sua personalidade, contudo, é de uma mulher forte que, embora introspectiva, possui uma profundidade ímpar e um notável senso contemplativo. A própria situação familiar a fez buscar a interioridade. Mesmo após sua saída de Poissy, mantém o zelo pelo aprimoramento e cultivo interior através do contato com as diversas obras de espiritualidade de seu tempo.

 

Essa tendência pessoal, aliada à aproximação da Vida Religiosa, a fez aspirar a consagração; chega a emitir um voto pessoal nesse sentido. Era seu desejo entrar para o convento das Capuchinhas, conhecidas pela austeridade e rigidez de vida, dedicada intensamente à penitência e à oração. Seu pedido, contudo, é recusado pelo superior da ordem sob a alegação de sua fragilidade física e com as palavras de consolo de que Deus a estava preparando para outra experiência.

 

Influenciada pelas tradições familiares e culturais de sua época, Luísa se vê diante da alternativa de um casamento de conveniência. Mais uma vez, os Marillac são estratégicos em prover um matrimônio que seja lhes fosse favorável, salvaguardando sua honra como nobreza e transferindo o incômodo que Luísa e sua origem representavam para o histórico familiar. Em 1613, com 22 anos, casa-se com Antônio Le Gras, secretário de ordenanças da rainha, tornando-se, assim, “Mademoiselle Le Gras”. Neste mesmo ano nasce seu filho Miguel, cujo temperamento intempestivo a preocupou durante muito tempo.

 

Embora representou uma mudança de rota diante do projeto de vida desejado, é importante salientar que o casamento e a maternidade não foram caminhos de frustração e infelicidade para Luísa. Elas os assumiu com a mesma doação e zelo. Foi uma experiência, contudo, também marcada por dificuldades e sofrimentos, seja em relação ao do filho, cerceado pelos cuidados excessivos da mãe e de suas projeções pessoais sobre ele[2], como também na estabilidade estrutural da família, o que passou a ter um impacto mais notável com o adoecimento e morte do marido em 1623.

 

Os encontros que transformam

 

A doença de Antonio Le Gras foi um período de intensas indagações para Luísa. Seus escrúpulos religiosos a fizeram ver nessa situação como que um castigo de Deus por não ter assumido o voto de consagração que fizera em sua juventude. No percurso espiritual, ela se fez acompanhar de pessoas que a ajudaram a caminhar com maior serenidade e discernimento, para com os quais ela sempre cultivou um sincero reconhecimento, acompanhado de um certo apego, o que a fazia temer a ausência dessa presença de apoio.

 

O ano de 1623 é marcado simultaneamente por momentos de angústia e de consolo espiritual para Luísa. Como ela mesma atesta em seus escritos, seu espírito é assolado por três substanciais indagações. No âmbito da fé, sofre com dúvidas em relação à imortalidade da alma; sobre seu estado de vida, questiona-se se deve abandonar seu esposo enfermo para cumprir seu voto de consagração, ou deve permanecer ao seu lado; acerca de seu diretor espiritual, teme perder esse auxílio que tanto lhe compraz. Essas questões lhe tiraram a paz e a fizeram mergulhar em ainda mais rigoroso ritmo de exercícios espirituais.

 

No dia de Pentecostes, naquele ano datado em 04 de junho, estando em oração na igreja de São Nicolau dos Campos, Luísa vive uma experiência singular de encontro com Deus, que lhe devolveu o consolo interior e lhe permitiu intuir as respostas aos dramas que lhe faziam penar. Sente-se confortada sobre os aspectos da salvação e da imortalidade da alma; percebe que, por ora, seu lugar é junto de seu esposo e de seu filho, e que dias virão em que ela viverá seu ideal de consagração numa experiência de “idas e vindas”, aspecto que lhe foi incompreensível no momento; quanto à sua direção espiritual, vislumbra que encontrará alguém, que de primeiro momento não lhe agradará, mas que lhe ajudará imensamente em seu caminhar para Deus.

Neste último item encontra-se a referência ao que foi o encontro entre Vicente e Luísa, dado por primeira vez no ano de 1626. Zelosa de sua vida de fé, Vicente foi indicado pelo então orientador espiritual de Luísa, Pedro Camus, bispo de Belley. Dada suas diferenças notáveis de personalidade, o encontro inicial entre Luísa e Vicente não foi, em primeiro momento, dos mais entusiasmados. O estilo refinado e culto de Luísa, moldado numa condição de vida mais abastada reluta diante do perfil rústico e do senso prático de Padre Vicente, cuja vida e ação já haviam sido tocadas e transformadas pelo encontro com os pobres. Ao assumir o cuidado espiritual da Senhora Le Gras, Padre Vicente a envolverá paulatina e ativamente nos caminhos da caridade, caminhos estes que foram transformadores também para sua vida e ministério.

 

Trata-se, no entanto, de uma relação de apoio e cooperação recíproca: Vicente foi um instrumento de Deus que ajudou Luísa a romper as barreiras dos próprios escrúpulos, apegos e inseguranças. Ela, por sua vez, contribui com seus muitos dons humanos e espirituais para organizar, ampliar e qualificar a obra da caridade iniciada por Vicente. Não seria honesto com o Carisma, especialmente em relação à Companhia das Filhas da Caridade, colocar Santa Luísa com participação e importância de segunda categoria. Há uma relação de equidade e complementariedade tanto no que se refere à amizade entre ambos como a cooperação no desenvolvimento da obra que empreenderam.

 

As “idas e vindas” da caridade

 

Os primeiros anos de viuvez foram para Luísa um período de intenso trabalho interior, de busca por reestabelecer-se humana e estruturalmente. Mudou-se para uma casa mais modesta, próxima à residência de Padre Vicente, dedicando-se à educação do filho, às suas disciplinadas devoções e a pequenos trabalhos. O acompanhamento que realiza com seu diretor foi lhe ajudando progressivamente a intuir novos caminhos para viver e traduzir seu dinamismo espiritual. Em primeiro momento, a aproximação das iniciativas de caridade organizadas por ele foram uma via pedagógica para Luísa sair de si mesma, libertando-se de seus complexos de culpa e descobrindo a dimensão ativa de sua contemplação.

 

As primeiras contribuições de Luísa de Marillac nas iniciativas de Vicente de Paulo foi na animação e formação das Confrarias da Caridade, criadas a partir da experiência de Chatillôn Les-Dombes em 1617 e que rapidamente se espalharam pela França. A partir de 1629, ela passa a visitar as Confrarias que, passados os primeiros anos, já não conservavam o fervor inicial. Seu senso pedagógico e capacidade de organização lhe foram de grande valia nesta tarefa que, além de possibilitar a Vicente e a ela um olhar de conjunto e amplo sobre a obra das Caridades, permitiu identificar e intervir com maior eficácia junto às   dificuldades existentes. Passou cerca de quatro anos envolvida com essa missão.

 

Entre os desafios encontrados estava a percepção de que as Confrarias, compostas por damas da aristocracia francesa, já não se empenham com a dedicação necessária no atendimento aos pobres. Suas famílias, especialmente seus esposos, passam a impedi-las de realizarem os modestos serviços de visitar os doentes, preparar e servir-lhes o alimento, confortá-los material e espiritualmente. Elas, então, delegaram essas tarefas às suas empregadas que, embora assumam o aspecto prático da ação, não possuem a mística que envolve esse trabalho, e o fazem sem zelo e cuidado.

 

É neste contexto que surge Margarida Naseau, uma jovem camponesa de Suresnes, que se apresenta a Vicente de Paulo com a disposição de assumir o serviço aos pobres não somente como uma atividade ocasional, mas como seu projeto de vida. Nela Vicente e Luísa vislumbram o que se veio a se tornar depois a Companhia das Filhas da Caridade e que teve como data fundacional o dia 29 de novembro de 1633, quando Luísa reúne em sua casa as quatro primeiras jovens.

 

Há nessa fundação uma originalidade de carisma e de estrutura. A Vida Consagrada da época se encontrava restrita às experiências conventuais, sem um envolvimento apostólico ativo e constituídas por mulheres provindas de famílias abastadas, capazes de pagar o dote exigido. O surgimento da Comunidade não se constitui como um projeto arquitetado estrategicamente por Vicente e Luísa – tanto que eles foram relutantes em levar a cabo a fundação – nem atrelado a eles ou a seus projetos pessoais. Vicente é incisivo em destacar a participação da Providência no surgimento da Companhia. Luísa, por sua vez, manteve vigilância permanente para que a Companhia conservasse e amadurecesse suas intuições originárias, tais como sua natureza secular e a centralidade do serviço dos pobres.

 

Acolhidas as moções do Espírito, Luísa assume as “idas e vindas” intuídas há quase uma década como seu caminho de doação e consagração a Deus. Na tarefa de organizar a Comunidade e como responsável pela formação das primeiras Irmãs, ela colocou todas as forças e seus dons a serviço dessa causa. Esse processo é percorrido entre alegrias e desafios. Em um primeiro momento, a missão das Filhas da Caridade esteve ligada diretamente às Confrarias, com as Irmãs assumindo os trabalhos que eram realizados pelas damas e, por vezes, estando sob a direção destas. Aos poucos, a Companhia vai construindo uma necessária autonomia, inserindo-se em novos espaços e assumindo novas frentes de missão.

 

Trata-se de uma novidade para a Igreja e a sociedade da época. Provindas de aldeias do interior da França e dos arredores de Paris, as Irmãs rapidamente conquistaram a empatia dos pobres, e reconhecimento por parte das senhoras e responsáveis pelos estabelecimentos em que atuavam. Contudo, não se tratou de uma postura unânime. As inevitáveis divergências exigiram posturas firmes dos Fundadores para que fossem salvaguardadas as intuições da origem, especialmente no momento de obter o reconhecimento eclesiástico da Comunidade e de garantir o serviço aos verdadeiramente pobres. A participação de Luísa nesse processo é fundamental, especialmente nas articulações de bastidores e nos diálogos com Vicente de Paulo.

 

Luísa de Marillac, pedagoga do amor afetivo e efetivo

 

A originalidade do apostolado das primeiras Irmãs carregou consigo inúmeros desafios. Provindas das aldeias, convivendo numa sociedade e Igreja patriarcais onde o papel da mulher estava relegado ao lar, a itinerância da missão as fez andar na contramão dos padrões culturais da época. Da mesma forma, o serviço dos pobres por elas assumidos necessitava de aprendizados básicos que iam desde o letramento para as mestras de escolas até técnicas de saúde e recursos medicinais para aquelas que atendiam os doentes. Os limites científicos do século XVII permitem mensurar as dificuldades, agravadas pelas situações de conflito e descaso social em que vivia boa parte da população. Luísa exerceu esse papel pedagógico de introduzir as Irmãs a esses conhecimentos basilares para bem realizarem a missão de servir os pobres.

 

Por outro lado, esse serviço é assumido sob uma perspectiva de fé, o que implicou o necessário aprimoramento espiritual das Irmãs. Em um período em que o povo não tinha acesso direto à Bíblia e a formação catequética era mínima, as jovens camponesas possuíam uma fé rica em valores, destacada por Padre Vicente com uma virtude a ser conservada pela Companhia – “o espírito das boas moças do campo” – porém rudimentar em relação aos conteúdos e compreensões fundamentais. Luísa de Marillac foi igualmente a mistagoga que acompanhou as Irmãs em seu crescimento espiritual, redigindo um catecismo que lhes fosse acessível, exortando-as à oração, às práticas devocionais que lhes permitissem viver uma profunda experiência de Deus.

 

Nesse caminho de maturação da fé e do discipulado, alguns discernimentos vão se apresentando aos Fundadores, desde as frentes de ação a serem assumidas, as colocações das Irmãs e as tensões da vida comunitária, como também a admissão e permanência destas. Já na primeira década, a Comunidade conheceu considerável expansão. Contudo, é preciso conhecer a autenticidade das motivações daquelas que se apresentam como também daquelas que já estão. Luísa é ciente de que o serviço dos pobres é exigente e que, conforme as dificuldades vão se apresentando, a vocação vai sendo lapidada. Essa lucidez expressa a confiança de que o projeto assumido é obra de Deus e que sua continuidade depende em primeiro lugar da obra da graça, acompanhada da resposta generosa de quem é chamado.

 

 

Morte e reconhecimento canônico

 

Luísa de Marillac faleceu em 15 de março de 1660, poucos meses antes de Vicente de Paulo. Sua beatificação se deu em 09 de maio de 1920, por Bento XV, e a canonização se deu em 11 de março 1934, por Pio XI. Em 1960 foi proclamada pelo papa João XIII patrona de todas as Obras Sociais.

 

Sua obra permanece viva através missão daqueles e daquelas que, inspirados/as em seu testemunho, assumem o serviço ao próximo, especialmente os mais pobres, como experiência de amor e doação ao próprio Deus.

 

Em seu leito de morte, deixou como testamento espiritual às Irmãs:

 

Minhas queridas Irmãs, continuo pedindo a Deus por vós e rogo conceder-vos a graça de perseverar em vossa vocação para que possais servi-Lo no modo como ele vos pede.

Tende grande cuidado do serviço dos pobres e, sobretudo, vivei juntas numa grande união e cordialidade, amando-vos umas às outras, para imitar a união e a vida de Nosso Senhor.

Pedi muito à Santíssima Virgem que seja vossa única Mãe[3].

 

A riqueza e atualidade de seu pensamento está acessível na obra “Luísa de Marillac: correspondência e escritos”, nas cartas dirigidas a Vicente de Paulo e que estão compilados entre os escritos deste, como também no trabalho zeloso de autores e autoras que colocaram sua pesquisa e dom literário a serviço da Companhia e da Igreja.

 

Indicações de obras sobre Santa Luísa de Marillac:

 

Biografias:

CALVET, Jean. Santa Luísa de Marillac: autorretrato. Lisboa: Editorial Evangelizare, 1958.

CHARPY, Elisabeth. Contra ventos e marés: Luísa de Marillac. Rio de Janeiro: Associação São Vicente de Paulo, 1990.

______________. Petite Vie de Louise de Marillac. Paris: Desclée de Brouwer, 1991.

GOBILLON, Nicolás. Vie de Mademoiselle Le Gras : fondatrice et première supérieure de la Compagnie des Filles de la Charité. Paris : André Pralard, 1676.

MARTÍNEZ, Benito. La Señorita Le Gras y Santa Luisa de Marillac. Salamanca : Editorial CEME, 1991.

______________. Empeñada en un paraíso para los pobres. Salamanca: Editorial CEME, 1995

 

Obras sobre espiritualidade:

BETANZOS, Benito Martínez. El Cristo de las Hijas de la Caridad. Salamanca: Editorial CEME, 2017.

CHARPY, Elisabeth. Orar 15 dias com Santa Luísa de Marillac. Aparecida: Editora Santuário, 2010.

 

 


[1] CALVET, J. Santa Luísa de Marillac. Auto-retrato. Lisboa: Editorial Evangelizare, 1958. p. 31.

[2] Vale recordar que durante longa data ela tentou fazê-lo padre, contando com a ajuda posteriormente de Vicente de Paulo para refletir melhor sobre seu intento. Miguel chegou a receber as Ordens Menores, mas em seguida abandonou o seminário e se envolveu numa vida de escolhas irrefletidas, o que muito preocupou Luísa. Contraiu um casamento clandestino que posteriormente conseguiu anular com a ajuda da mãe. Dez anos antes da morte de Luísa, Miguel casou-se com Gabriela Le Cler e tiveram uma filha, Luisa Renata, que foi alegria e consolo para a avó em seus últimos momentos.

[3] Luísa de Marillac: correspondências e escritos. p. 967.

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